terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Gasto do SUS com ‘doenças do esgoto’ no CE financiaria 3 postos de saúde

Foto: Kid Júnior.
Pressionar a descarga do banheiro é apenas o início de um longo processo de tratamento do esgoto que é invisível para grande parte da população cearense. Contudo, praticamente metade do Estado ainda convive com a falta de saneamento básico e está sujeita a doenças – muitas vezes graves – relacionadas aos efluentes não tratados.

Para Brenda Rozendo, cientista ambiental e assessora técnica do Instituto Terre des Hommes (TdH Brasil), a combinação de um organismo naturalmente sensível e a maior exposição física a locais com esgoto a céu aberto, lixo ou água poluída faz com que as crianças liderem esses índices.

1,4 mil 
piscinas olímpicas de esgoto sem tratamento são despejadas diariamente no meio ambiente do Nordeste. Para o Trata Brasil, o cenário se justifica pela precariedade da infraestrutura básica na região.
“As crianças vão ter esse contato muito mais próximo porque não têm o mesmo cuidado que uma pessoa adulta em ambientes que estão sujos. Até essas crianças atingirem certa imunidade, elas vão ficar doentes”, entende.

O cenário não é incomum para Mário França, 23 anos, morador do Vicente Pinzón, em Fortaleza. O território é cortado pelo Riacho Maceió, um antigo recurso hídrico da capital que desemboca na Avenida Beira-Mar. Contudo, até chegar lá, atravessa um longo percurso recebendo lixo e água suja e contaminada.

“Ocorre muito: as crianças entram no esgoto, tomam banho, pegam peixe. Elas vêm no período da tarde, quando está menos quente”, confessa o articulador comunitário.

De fato, os jovens são os mais afetados pelas “doenças do esgoto” no Ceará: em 2024, houve 5.187 internações de pessoas de até 4 anos por essa causa, além de 1.825 de 5 a 9 anos e 1.049 de 10 a 19 anos. Ou seja, quase 70% das vítimas eram crianças ou adolescentes em idade escolar, segundo estudo técnico do Instituto Trata Brasil.

No ano inteiro, o Ceará registrou 12,2 mil internações por doenças relacionadas ao saneamento ambiental inadequado (DRSAI). Em apenas um ano, foram gastos R$5,14 milhões para tratar os pacientes afetados, o suficiente para construir três postos de saúde de perfil compacto.

A redução das internações por DRSAI aliviaria o sistema de saúde, permitindo que recursos fossem redirecionados para outras áreas. Além disso, melhorias no saneamento básico têm impactos positivos na educação, na produtividade e na qualidade de vida geral da população.

Instituto Trata Brasil
Em estudo de 2025

A estimativa do Diário do Nordeste se baseia em custos de uma Unidade Básica de Saúde (UBS) Tipo I em contratos ou financiamentos do Ministério da Saúde (MS), que variam de R$ 1,3 milhão a R$ 2 milhões, dependendo de fatores locais como valor do terreno, equipamentos e obras complementares.

No caso do Ceará, o estudo revelou ainda que 84% das internações no Sistema Único de Saúde (SUS) são causadas por doenças de transmissão feco-oral, principalmente infecções intestinais. Ou seja, a maioria poderia ser evitada com medidas básicas de saneamento. 

Motivo das internações no Ceará
Doenças como diarreia e infecções intestinais lideram em disparada

Transmitidas por inseto vetor14,2%
Transmitidas por inseto vetor14,2%
Transmissão feco-oral84,1%
Transmissão feco-oral84,1%

Fonte: Instituto Trata Brasil.

Por isso, a universalização do acesso à coleta e ao tratamento de esgoto e da distribuição de água tratada poderia reduzir os custos com saúde em R$69 milhões por ano, no Ceará. A economia chegaria a R$1,2 bilhão até 2040, pela redução de despesas tanto com internações quanto com o pagamento de profissionais doentes afastados.

Infância é mais afetada
Além da atividade laboral, a educação de crianças e jovens também pode ser prejudicada. Mais de 1 milhão de cearenses de 0 a 19 anos vivem em domicílios sem esgotamento sanitário adequado, o equivalente a 42% dessa população, conforme o Censo Demográfico 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O levantamento ainda mostra que, dos jovens não atendidos pela rede, 86% utilizam fossa rudimentar ou buraco. 

Isso traz reflexos na frequência e no atraso escolar. Afinal, aponta o Trata Brasil, quanto mais os estudantes ficam adoecidos, menos tempo têm no ambiente escolar. O Instituto avaliou que a carência afeta até o desempenho no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem): a nota média de jovens sem banheiro em casa é de 20% a 30% menor.

Internações por "doenças do esgoto"
Nordeste é a segunda região com mais casos.
Fonte: DATASUS, Ministério da Saúde e IBGE/Instituto Trata Brasil.

Essa é uma das maiores preocupações de Mário França, do início dessa reportagem. Ele é membro da Rede Ambiental de Valorização de Ecossistemas em Restauração (Reaver), criada em 2024 para mobilizar a juventude na luta pela preservação ambiental.

Para ele, a falta de saneamento básico no Grande Mucuripe se atrela ao racismo ambiental – conceito que aponta espaços ocupados por pessoas de baixa renda como áreas de maior vulnerabilidade à degradação. 

Um diagnóstico da própria Prefeitura de Fortaleza, de fevereiro deste ano, identificou que o Riacho Maceió recebe “fontes de poluição com descarga irregular de efluentes decorrentes da existência de vazios de coleta de esgotos”.

As crianças que vivem na casa de Cláudio Rodrigues, morador da região desde que nasceu, há 48 anos, já adoeceram por causa do canal poluído. Mas não só elas: “doença aqui não falta, não”, lamenta ele. Além do mau cheiro permanente, a proliferação de mosquitos e moscas é intensa na área e aumenta no período chuvoso.

“Antigamente, quando tinha uns 12 anos, eu tomava banho, bebia era a água dele. Era bem limpinho, você via o chão”, lembra. “Hoje, tem prédio e casas que botam esgoto direto na corrente, tem vários canos jogados para o canal. Cai de tudo aí”, diz, olhando para o córrego cheio de plásticos e entulho.
Foto: Kid Júnior.
Riacho Maceió, que desemboca na turística Avenida Beira-Mar, tem caminho de despejos inadequados.
Em outro ponto do Vicente Pinzón, na Rua Professor Luiz Costa, o acúmulo de esgoto acontece no meio da via, escorrendo de áreas mais altas do Morro Santa Terezinha. A dona de casa Jeane Silva, que mora em frente às poças escuras e mal-cheirosas, conta que o material invade sua residência quando chove.

“Minha sogra tem Alzheimer. Às vezes, ela quer ficar aqui fora, mas ninguém aguenta por causa da catinga. É insuportável”, afirma na varanda em frente a um mercadinho com várias frutas e verduras expostas. Ela mesma não entende o problema, já que as casas são ligadas à rede e pagam pela coleta de esgoto.

Segundo o diagnóstico do Riacho Maceió, além de melhorias no parque, a Prefeitura de Fortaleza e a Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece) “estão investindo em obras de esgotamento sanitário em 18 ruas da região, beneficiando 637 residências e cerca de 2.230 moradores, contribuindo para a qualidade de vida e infraestrutura urbana”.

Diagnóstico para toda a comunidade
As “doenças do esgoto” também podem ser fatais: 30 crianças e adolescentes cearenses faleceram por DRSAI, em 2024. Porém, é a outra ponta da vida que mais morre: das 391 vítimas registradas no ano, 300 eram pessoas com mais de 60 anos. Conforme o Trata Brasil, “crianças e idosos são mais frágeis e relativamente mais susceptíveis”.

Esse olhar para populações vulneráveis é uma recomendação de João Menescal, vice-presidente da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental no Ceará (Abes-CE). Ele destaca que o esgotamento sanitário é relevante para a preservação ambiental e a saúde pública ao evitar a contaminação de corpos hídricos. 

“Muitas vezes, o esgoto é lançado inadequadamente nas ruas ou na rede de drenagem, onde deveria passar somente água da chuva. Você leva esse esgoto bruto sem tratamento para os rios e mares e isso provoca um problema ambiental. Essa é a importância do esgoto: afastar da população os contaminantes que podem trazer malefícios para a saúde”, explica.
Foto: Kid Júnior.
Esgoto corre a céu aberto em rua do Vicente Pinzón, mesmo com moradores pagando taxa de coleta.
Por isso, investigar as condições de saneamento é preponderante para a saúde coletiva. Um caso emblemático ocorreu em setembro de 2024, quando uma criança de apenas um ano, moradora de um assentamento rural de Caucaia, faleceu por meningoencefalite amebiana, doença apelidada de “comedora de cérebro” por destruir tecidos cerebrais. 

Além da confirmação da ameba Naegleria fowleri no organismo da menina, análises também a encontraram numa amostra de água da localidade. A contaminação da criança, possivelmente, ocorreu pelo contato de água não tratada com suas narinas durante o banho ou lavagem do rosto, segundo a Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa). 

O secretário executivo de Vigilância em Saúde, Antonio Silva Lima Neto (Tanta), lembra que, a partir daí, foram instalados sistemas de cloração e filtragem da água da comunidade para prevenir novas ocorrências, já que a ameba habita naturalmente ambientes aquáticos e terrestres e representa risco em áreas com deficiências no saneamento básico.

Segundo o gestor, a inadequação do saneamento é um fator direto para a prevalência e transmissão de doenças por meio de coliformes fecais e rotavírus, por exemplo. Mosquitos vetores também “prevalecem onde você não tem saneamento adequado".

Para Tanta, a atenção ao esgotamento sanitário é uma atividade de vigilância ativa, que requer interlocução direta com a Cagece para garantir a qualidade da água, combatendo assim doenças de veiculação hídrica e vetorial.

90%
de acesso ao esgotamento, até 2033, é a meta do Marco Legal do Saneamento.
Indagada sobre como ajuda a monitorar a saúde da população, a Cagece afirmou que, antes da implantação de redes de esgotamento sanitário, são realizados levantamentos técnicos e diagnósticos que orientam o planejamento das obras. 

“O impacto da ampliação da coleta e tratamento de esgoto pode ser observado diretamente na redução dos lançamentos clandestinos, contribuindo para a despoluição dos recursos hídricos e preservando a água dos mananciais para consumo humano”, ressalta.

Já no tocante à água distribuída, a Companhia ressaltou que avalia “rigorosamente” a qualidade da água tratada, “cumprindo integralmente” parâmetros do Ministério da Saúde.

Hoje, a Cagece mantém um Laboratório Central em Fortaleza, nove Laboratórios Regionais e 200 Laboratórios Operacionais localizados nas Estações de Tratamento de Água (ETAs). Ao todo, eles realizam quase 48 mil análises mensais para assegurar a qualidade da água distribuída no Estado.
Foto: Saulo Roberto/Camila Lima.
Em Fortaleza, cerca de 27% dos domicílios ainda não estão ligados à rede de esgoto.
Metas para melhoria
Um dos principais passos para tentar reduzir esses problemas foi o início da maior Parceria Público-Privada (PPP) de esgotamento do Brasil, entre a Cagece e a Ambiental Ceará. O plano envolve 24 municípios das regiões metropolitanas de Fortaleza e do Cariri, devendo chegar a 4,3 milhões de cearenses.

Investimentos de R$6,2 bilhões devem permitir que, até 2040, 95% da população atendida pela Ambiental Ceará tenha acesso à coleta e ao tratamento de esgoto. Atualmente, segundo a Cagece, o índice de cobertura dos serviços de esgotamento sanitário no Ceará é de 50,36%, enquanto em Fortaleza alcança 73,04%.

PPP de esgotamento sanitário no Ceará
Onde falta rede, população usa fossas, buracos e despeja até rejeitos em corpos d'água.
Fonte: Censo Demográfico 2022/IBGE

É necessário um trabalho social para que a população entenda a importância daquela ligação e veja que o custo que ela vai ter a mais, na realidade, é um benefício que está trazendo pro meio ambiente e pros seus vizinhos.
João Menescal
Vice-presidente da Abes-CE
Somente em 2024, a empresa implantou 215 km de novas redes, permitindo que mais de 129 mil imóveis sejam ligados ao serviço. Já em 2025, devem ser instalados mais 327 km, totalizando mais 56 mil imóveis com infraestrutura disponível para ligação à rede.

Para João Menescal, da Abes-CE, a PPP é benéfica no contexto cearense porque o modelo permite e autoriza a Ambiental a ter uma maior celeridade na execução das obras e uma captação de recursos mais ágil, superando a necessidade da Cagece de licitar e elaborar individualmente os projetos de cada empreendimento.

O especialista lembra que a expansão da rede de esgoto é mais complexa do que a de água tratada devido à natureza gravitacional do sistema, exigindo um planejamento sofisticado que considere o relevo, o subsolo e a geografia local.

Fiscalização atuante
Embora Fortaleza tenha 73% de cobertura de rede de esgoto, o índice de atendimento real, que considera apenas os imóveis já conectados, é de 65,89%. Segundo a Cagece, mais de 34 mil imóveis na Capital já têm rede de esgotamento sanitário disponível, mas ainda não são interligadas. 

A empresa lembra que ligar as residências à caixa de ligação de esgoto instalada nas calçadas é uma obrigação legal, e o descumprimento pode acarretar multa do órgão fiscalizador municipal – no caso, a Agência de Fiscalização de Fortaleza (Agefis).

Quando se fala em desenvolvimento, se fala também em saneamento básico. A devida conexão ao sistema de esgoto gera impacto positivo na saúde, com a redução de doenças e proliferação de mosquitos, na valorização dos imóveis e no desenvolvimento das áreas atendidas pelos serviços.

Sâmia Régia
Coordenadora de Interação Social da Cagece.

Além disso, a falta de ligações gera impacto financeiro negativo: só na capital, R$3 milhões deixam de ser arrecadados mensalmente. O valor, diz a Cagece, poderia ser investido em novas melhorias no saneamento da cidade.

Com ações em formato de blitz, a Cagece e a Ambiental Ceará percorrem diversos bairros, incentivando os moradores a se interligarem à rede de coleta e tratamento de esgoto. O Ministério Público do Ceará (MPCE) também acompanha as atividades por meio do Programa Esgotamento Legal, que visa à universalização do saneamento básico no Estado. 

A Cagece informou que o projeto-piloto do Esgotamento Legal segue em execução, abrangendo inicialmente os municípios de Aracati, Itarema, Marco, Tianguá, Horizonte e Maranguape. Por meio da sensibilização, até o início de novembro, foram realizadas 1.649 novas interligações à rede.  

Diário do Nordeste

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